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quarta-feira, 15 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20858: (De)Caras (152): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte I (Depoimentos do embaixador Nunes Barata, e do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)



Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > BCAÇ 506 > Abril de 1964 > Da esquerda para a direita: (i) o alf mil António Pinto; (ii) o  Mário [Rodrigues]  Soares, comerciante de Pirada e "agente duplo", segundo era voz corrente; (iii) o alf méd médico (e grande intérprete do fado de Coimbra) Luiz Goes (1933-2012( ; e (iv) e o alf mil Spencer.

Foto (e legenda): © António Pinto (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona leste > Região de Gabu >  Setor L6 > Pirada > c. 1973/74 > 14 de Fevereiro de 1974, ten cor cav, cmdt do batalhão e o célebre comerciante  Mário Soares (este em primeiro plano: dizia-se que tinham contactos privilegiados com os "dois lados da guerra", as NT e o PAIGC, ou pelo menos, as autoridades senegalesas).

O ten cor cav Jorge [Eduardo Rodrigues y Tenório Correia] Matias, cmdt do BCAV 8323/73, que estava sediado em Pirada (, o comando, a CCS e a 3ª C/BCAV 8323/73) faz aqui uma homenagem, emocionada aos bravos de Copá, o 4º pelotão, da 1ª C/BCAV 8323/73, comandado pelo alf mil at cav Manuel Joaquim Brás, e a que pertencia o António Rodrigues, e reforçada por mais uma secção, do 1º pelotão, comandada pelo fur mil Carlos Eugénio A. P. Silva.

Foto (e legenda): © António Rodrigues. (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. O célebre comerciante de Pirada, Mário [Rodrigues]  Soares era uma figura "intrigante"... Conviveu com vários camaradas nossos, ao longo da guerra, como o António Pinto (*) ou o Carlos Geraldes(**)... Dizia-se que tinha relações privilegiadas com os dois lados do conflito, as NT e o PAIGC. Dizia-se inclusive quer era um "agente duplo", trabalhando para a PIDE/DGS e para o PAIGC. Ora, não temos provas disso. Está em causa a sua honra. 

Temos que ser cautelosos, não fazer juízos apressados sobre o comportamento dos comerciantes portugueses e outros (libaneses, cabo-verdianos...) que ficaram no mato, apesar da guerra. Em boa verdade, a tropa tinha tendência para pôr em causa a "lealdade" dos comerciantes, colocados num posição difícil no interior da Guiné.

Do Mário Soares sabe-se que tinha bons contactos no Senegal. E que  desempenhou o seu papel na história da indepência da Guiné-Bissau.  Foi através dele que o gabinete do Governador António Spínola consegiu chegar ao Leopoldo Senghor (como se depreende de um histórico depoimento do embaixador Nunes Barata, ex-alf mil, na altura, colaborador íntimo de Spínola,  de que a seguir reproduzimos um excerto; por lapso, chama-lhe António Mário Soares)...

Não sei o que é feito  dele, é provável que já não esteja entre o número dos vivos. Em 1974 já teria cerca de 40 e tal  anos, a avaliar pelas fotos acima reproduzidas,  Li algures (, já não posso precisar onde...) que ficou na Guiné, depois da independência, mas terá saído do país ainda no tempo do Luís Cabral, em novembro de 1975.  Sabemos, pelo Carlos Geraldes, que em 1964/65, era casado, tinha duas filhas e um filho e era natural de Lisboa. Luísa era o nome da esposa. A filha mais chamava-se Rosa, o filho do meio era José (e estudava em Lisboa) e mais nova, Eva Lúcia, tinha nascido em 11/9/1957.

Alguém dos nossos leitores ainda se lembra dele, do  Mário Soares ? Tem fotos e histórias dele ?

O seu nome era referido com muita frequência nas cartas que o Carlos [Adrião] Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66) mandava para casa, e de que foi publicada uma seleção no nosso  blogue, em 2009 (**).

O Carlos Geraldes conheceu o Mário Rodrigues Soares quando a sua companhia, a CART 676, chegou a Pirada, em 15 de outubro de 1964, vinda de Bissau (via Bambadinca, Bafatá e Nova Lamego). Vão tornar-se amigos. O Carlos passa a ser visita frequente da sua casa. E descreve-o logo nestes termos: "É uma excelente pessoa. Muito gordo, de bigodinho à brasileiro, mas sempre de boa disposição, irradiando simpatia na forma franca e directa com que trata toda a gente branca ou preta." (Pirada, 15/10/1964). E defendo-o das suspeitas de colaborar com o IN.

Estamos a reler as suas cartas, que nos ajudam a perceber melhor a personalidade e o comportamento deste comerciante português, "bon vivant", hospitaleiro, insinuante, amável, prestável, com um vasto capital de  relações sociais, a nível interno e até externo (com as autoridades e os comerciantes do outro lado da fronteira, no Senegal). Nesta I parte, selecionámos excertos das cartas para a família, do período de Outubro de 1964 a março de 1965, e em que o Carlos faz referências ao seu "amigo M. Santos", pseudónimo de Mário Soares.

Segundo a historiadora Maria José Tístar ("A PIDE no Xadrez Africano: Conversas com o Inspector Fragoso Allas", Lisboa, Edições Coilibri, 2017), o comervciamte  António Mário Soares, estabelecido em Pirada, na fronteira com o Senegal, seria  um "agente duplo":  informador da PIDE/DGS,  e ao mesmo tempo informador do PAIGC.

Contrariamente ao Rodrigo Rendeiro,  comerciante de Bambadinca,  que terá tido problemas logo a seguir ao 25 de Abril, pela sua ligação à PIDE/DGS, o Mário Soares terá ficado na Guiné independente mas terá "caído em desgraça" e sido expulso do país, um ano e tal depois, em novembro de 1975. (***)

A CART 676 foi mobilizada pelo RAP 2, partiu para o CTIG em 8/5/1964 e regressou a 27/4/1966. Esteve em Bissau, Pirada e Bissau. Comandante: cap art Álvaro Santos Carvalho Seco.


1. Depoimento do embaixador João Diogo  Munes Barata:

[Alferes miliciano na Guiné (1970); secretário e, posteriormente, chefe de gabinete do Governador da Guiné, general António de Spínola (a partir de Maio de 1971); adjunto diplomático da Casa Civil do Presidente da República, António de Spínola (Maio a Setembro de 1974),  tendo no desempenho deste cargo, colaborado no processo de descolonização; delegado do MNE na Junta de Salvação Nacional]

(...) Com essa ideia, portanto, com a ideia de avançar no processo de descolonização, o general tentou estabelecer contactos com o Governo senegalês e, através dele, com o PAIGC. Os primeiros contactos foram feitos através do chefe da delegação da PIDE/DGS [em Bissau], o inspector Fragoso Allas e por Mário Soares. Mário Soares, não o Dr. Mário Soares, mas [António] Mário Soares um comerciante de Pirada, um homem que se chamava Mário Soares, mas que era comerciante em Pirada, uma povoação fronteiriça da Guiné com o Senegal. Esse comerciante ….

Eu lembro-me de um dia estar no meu gabinete no Palácio e de o senhor Mário Soares ir lá comunicar que já tinha estabelecido o contacto com o lado de lá e que, portanto, se podiam iniciar as negociações para uma ida, para um encontro do Governador com o presidente Senghor. Houve previamente um encontro. O general Spínola foi duas vezes ao Senegal (acompanhei-o em ambas as visitas).

A primeira, para um encontro com o ministro senegalês dos Assuntos Parlamentares, porque evidentemente o presidente Senghor, na altura, ainda não sabia bem quais eram as ideias do general Spínola e não quis, evidentemente, romper as exigências protocolares e, como chefe de Estado encontrar-se com o governador de uma província, de uma colónia. E mandou um ministro. (...) (****)


2. Depoimento do nosso saudoso camarada Carlos [Adrião] Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), que se tornou amigo do Mário Soares e visita frequente da sua casa... Reprodução de excertos das suas cartas com referência explícitas ao Mário Soares:


Parte I (outubro de 1964 - março de 1965) (*****)

Pirada, 15 de outubro de 1964


(...) Segunda-feira de manhã partimos para Pirada. (...)

Começámos logo por ser apresentados ao comerciante mais importante cá da terra, o Sr. Mário Soares, um grande amigalhaço de toda a tropa que por aqui tem permanecido. Acompanhado de um empregado que segurava um enorme cesto cheio de pão fresco acabado de sair do forno. Ali mesmo no meio da estrada, começou a distribui-lo pelos soldados que o recebiam boquiabertos de espanto. Não poderia haver melhor recepção de boas vindas. Um verdadeiro luxo.

(Daqui em diante, sempre que mencionar esta personagem, designá-lo-ei pelo pseudónimo, M. Santos, para não suscitar quaisquer parecenças, com a figura pública actual que todos conhecem) (...)

(...) Quanto à nossa casa é esplêndida. Tem um grande quintal, com um poço no meio e uma larga extensão cimentada debaixo de um enorme alpendre, encostado à casa, sob o qual tomaremos as nossas refeições, quando tivermos aqui a nossa Messe. A casa é fresquíssima e dorme-se aqui muito bem, pois não tem mosquitos! Faltam apenas os móveis, mas temos cá um carpinteiro indígena muito habilidoso que já nos está a fornecer mesas e cadeiras. Camas temos duas de casal, uma em madeira, outra em ferro, emprestadas pelo M. Santos. Os sargentos estão a dormir em camas de ferro militares, que trouxemos. (...)

(...) Quanto à luz eléctrica, por enquanto não está montada, embora tenhamos um gerador trifásico de 220 Volts, movido por um motor a diesel. Só estamos à espera de arranjar fio para fazer a instalação por toda a aldeia. Contamos que lá para Janeiro se possam pôr de lado os Petromax e se pense até na possibilidade de sessões de cinema com uma máquina de projectar do Sr. M. Santos.

É uma excelente pessoa. Muito gordo, de bigodinho à brasileiro, mas sempre de boa disposição, irradiando simpatia na forma franca e directa com que trata toda a gente branca ou preta.


É o nosso Anjo da Guarda. Todos os dias manda cá o criado dele, o Demba, com uma garrafa de água filtrada e um termos com cubos de gelo, para que nunca nos falte água fresca no quarto. É um indivíduo que, mesmo aqui, longe da nossa civilização, não descura todos os pormenores de conforto para criar à sua volta um ambiente requintado e de um bom gosto que se julgaria inacreditável encontrar por estas paragens. 

Vive como um nababo indiano rodeado por uma família tranquila (a esposa e duas filhas) e que, pelo menos, aparenta a mais completa felicidade. Um verdadeiro achado que vim encontrar aqui neste fim do mundo mas, estou bem em crer, quase princípio do Paraíso.

Já começou a afluir gente vinda de todo o lado, até do Senegal, para se tratar no nosso posto clínico, pois a novidade de termos um médico na Companhia, depressa se espalhou. Aliás, a dois passos daqui, estão os nossos principais informadores, nas pessoas do chefe da polícia e outros funcionários administrativos da aldeia senegalesa nossa vizinha, com quem o nosso amigo M. Santos mantém fortes relações de interesses mútuos. São eles os primeiros a comunicar a presença de grupos armados que habitualmente passam por esta zona a caminho da região centro da Guiné, o Oio. Está até combinada uma jantarada em que eles serão nossos convidados. (...)

Pirada, 1 de dezembro de 1964


(...) Bafatá é uma vilória bastante razoável. Tem um clube que até dá cinema todos os dias. A energia eléctrica é fornecida por um gerador a diesel, um bocado velho e a luz está constantemente a ir abaixo. Mas é melhor que nada. Fui lá este fim-de-semana com o M. Santos e a família, e não deixei escapar a oportunidade de farejar um pouco de civilização.

Hoje também posso dizer:

- Olhem, sabem? No sábado fui ao cinema! Agora não são só vocês que me dizem isso em todas as cartas que me escrevem.

Por acaso até era um filme do Jerry Lewis, que já tinha visto, “Jerry, Primeiro Turista do Espaço”.

Jantámos em casa de um comerciante amigo do M. Santos e, no domingo, almoçámos em casa do Secretário da Administração, outro amigo dele e que, conforme vim a descobrir, depois, é de Viana! Falámos sobre a nossa terra, recordando os tempos em que andou no Liceu, que nessa altura seria ainda, evidentemente, o Liceu Velho.

Bajocunda, 8 de fevereiro de 1965

(...) Ontem, domingo, fui até Pirada, resolver alguns assuntos pendentes e aproveitei para rever os amigos que lá deixei, o M. Santos e a família, (...)

(...) O M. Santos, como sempre, faz questão em receber-me para jantar, o que eu nem me atrevo a recusar, tão maravilhosos são os jantares em casa dele.

Quando finalmente regressei a Bajocunda já passavam das 23h00, hora propícia para eles andarem por aí a preparar alguma emboscada… mas felizmente, por enquanto ainda não se resolveram.
Na noite anterior tinha também visitado, de jeep, algumas tabancas por aqui perto, para dar uma impressão de que estamos sempre vigilantes a qualquer hora do dia e que podem confiar na tropa para os proteger, caso venham a ser atacados por algum grupo armado que, vindo do Senegal, resolva fazer política de terra queimada para assustar as populações e levá-las a abandonar este território, que é o que esta gente mais teme.

Quem me sugeriu a ideia para esse passeio nocturno, e até me serviu de guia, foi um comerciante de Bajocunda, o Sr. António Costa. Muito alto e muito gordo, este indivíduo de raça negra é também um grande bonacheirão que gosta imenso de beber e de receber visitas mas que no entanto não chega aos calcanhares do M. Santos, lisboeta de gema, recém incluído nestas guerras por ter tido dificuldades financeiras na Metrópole, segundo se consta.  (...)

Bajocunda, 22 de fevereiro de  1965


(...) O M. Santos, por várias vezes já me mandou recado para ir lá [, a Pirada,]  comer uns camarões ou umas sardinhas assadas mas, obviamente, nem tenho podido. (...)


Bajocunda  1 de março de 1965


(...) Ontem à noite, antes de jantar, estivemos em Pirada, eu o Gabriel e o Inácio (outro alferes da mesmo Companhia de Cavalaria, que gradualmente se está a juntar a nós em Bajocunda). 

O M. Santos recebeu-nos com a habitual cortesia mas não conseguimos ficar lá muito tempo, pois o capitão começou a resmungar pelo facto de terem vindo todos os oficiais de Bajocunda, de maneira que, a contragosto, tivemos de vir embora. Aliás, desde que apanhou aquele susto na estrada Bajocunda-Canquelifá, o capitão nunca mais foi o mesmo. (...)


Pirada, 15 de março de 1965


Estou de novo em Pirada, onde me sinto como em casa. Foi um verdadeiro alívio deixar Bajocunda pois não consegui afeiçoar-me aquilo de maneira nenhuma. 

Isto aqui, em Pirada, é muito mais airoso, há muito mais população, a Messe é fora do quartel e tenho o meu amigo M. Santos que continua a ser uma excelente pessoa.

Bajocunda ficou entregue a uma Companhia de Cavalaria e nós ficámos apenas com Pirada e Paúnca. É muito menos trabalhoso. (...)


Pirada, 21 de março de 1965



Mais uma vez aqui estou a colocar, à pressa, a escrita em dia, à luz do Petromax, pois desta vez adiantaram o dia do Correio. Tenho de fazer serão para poder chegar a tempo. Mas não faz mal, amanhã só me levantarei lá para as dez da manhã.

Aqui dorme-se muito. Depois do almoço, dorme-se a sesta, quase sempre até às 4 da tarde. Depois quando há serviço para fazer, vamos até ao quartel. Quando não há, toma-se banho, jogamos o Ôri ou vamos a casa do M. Santos beber uns whiskies.

Autêntica vida de malandro! Quero dizer… de guerreiro! Porque de vez em quando também se vai para o mato a qualquer hora do dia ou da noite e fica-se por lá não importa quanto tempo, a dormir em que cama houver, ou mesmo até sem dormir!

E quando o Manel Jaquim [, o homem do cinema ambulante,]por cá aparece, lá tenho de pagar os bilhetes a uma data de gente muito simpática que me enche de mimos, interesseiros, claro!
-“Alfero Gérardis, bonito, boniiito… dimais!!!” – são os elogios que estou sempre a ouvir, por esta acção psico-social, actividade a que agora me dedico no intervalo das guerras. (...)

[Seleção, fixação, revisão de texto, e realces a negrito e a amarelo: LG]

(Continua)

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28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964